segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Carta a uma irmã

Neste momento eu quero que você me odeie. Quero que você me odeie com todas as suas forças, quero que você me desacredite, que me puna, mentalmente... quero ouvir e ver indiretas e diretas soltas pelo ar. Seus dedos trêmulos, sua voz impositiva. Com todas as suas forças, me odeie, irmã.
Somente do seu ódio, da sua fúria é que surgirá sua força de reação. Que sua raiva se volte contra mim agora, eu durmo e acordo acreditando que ela vai encontrar seu foco. E o foco da raiva nunca deve ser quem está, como você, do mesmo lado da opressão.

Eu já estive aí. Eu, na verdade, não estou ilesa de estar aí, no lugar que você está. É a primeira vez que digo isso assim, num lugar onde todos podem ler... mas eu passei oito anos defendendo um agressor. Pior, não era qualquer agressor, ele era um pedófilo, abusava de sua irmã quando ela era criança pequena. Esse cara, agressor, pedófilo e abusador com quem eu tive um relacionamento abusivo... esse cara queria ter filhos. E me convencia que era uma boa ideia. E ele achava também que era uma boa ideia iniciar seus filhos sexualmente. Esse cara, com quem eu vivi. Com quem me relacionei por oito anos. Esse cara com quem eu perdi a minha virgindade (e esse valorzinho idiota pesa). Esse cara com quem eu construí uma casa, uma vida. Esse cara para o qual minha mãe me entregou para viver com ele (e eu tinha 18 anos), por quem deixei minha casa, minha vida, meu estado (pela primeira vez). Ele era esse cara, ele era aquele cara que a gente sempre ouve falar, mas que acha que nunca vai acontecer com a gente. Eu tava do lado dele e eu nunca pude enxergar que ele era esse cara. E, quando eu notei, anos depois do termino desse relacionamento, eu me culpei (e me culpo) porque eu amava esse cara. E porque eu nunca pude reconhecer que ele era esse cara. Porque eu nunca pude defender a irmãzinha dele das atitudes dele. Porque eu pensei e ter um filho com ele. Porque eu nunca denunciei e hoje ele vive com uma mulher que tem filhos. Esse cara pode estar abusando dessas crianças. E eu nunca vou me perdoar, porque eu amei esse cara.

Ah, esse cara, aquele cara, não parecia com nada ser "esse cara". Ele era um mar de carinho e fofuras. Dizia e agia como se me amasse profundamente. Me enchia de presentes e elogios. Me mimava. Ele era aquele outro cara, sabe, aquele cara que todas as suas amigas invejam? Porque além de tudo isso, esse cara tinha um ótimo emprego, daqueles empregos que as pessoas invejam. Esse cara também era muito inteligente, era um daqueles caras que chamam de gênio, provável que seja a pessoa mais inteligente que conheci. Esse cara também era engajado politicamente, tá, não como eu vejo hoje que alguém deveria, mas ele era. Todo ligado em democratização da comunicação, fazia parte de uma ONG (ok, ok, naquela época isso parecia legal!) e dedicava boa parte do seu tempo pra coisas interessantes, diversas, engajadas, importantes. Enfim, esse cara, ele parecia muito ser aquele cara.

Eu sempre soube que ele não era aquele cara. Sempre talvez não, mas soube muito cedo no nosso relacionamento. Mas eu gostava de repetir pra mim mesma que ele era aquele cara, que ele não era esse cara, que, afinal, ele não tava mais abusando da irmã, e que, talvez, quem sabe, não fosse nenhum absurdo isso, afinal, quem inventou que está errado. Esse cara me fez questionar meus valores e mesmo acreditar nos valores dele. Tudo porque eu queria acreditar que ele não era esse cara, que ele era aquele cara.

E não foi por nada disso que nosso relacionamento terminou. Entre ondas de traições, quebras de confiança e manipulações uma hora eu olhei pra fora e vi que podia viver sem ele. E fui em frente. E eu realmente demorei pelo menos três anos a mais, ou seja, 11 anos, pra entender que aquele não era aquele cara, que aquele, ele era esse cara. E nesses anos todos eu briguei com amigas e amigos, com a família. Defendi com unhas e dentes que ele era aquele cara. Porque admitir que ele era esse cara era admitir o meu fracasso, afinal, de estar com ele. De ter aceito e legitimado um cara desses. Era ser conivente, era ser culpada. Porque a gente vive num mundo onde a dinâmica dos acontecimentos sempre culpa a mulher que está do lado desse cara e esse cara segue impune. (e esse cara, importante dizer, está impune)

Essa minha história com esse cara é uma das histórias que eu poderia contar, divido com você, e com o mundo, poque ela é a pior delas. Mas em menor ou maior grau, esse não foi o último cara desses que eu estive. Sempre defendendo eles, nunca ouvindo as pessoas mais importantes da minha vida, que sempre estiveram ao meu lado. E, irmã, eu sei que eu não sou a pessoa mais importante da sua vida. Nossa amizade vem de longe, mas ela tem encontrado força há pouco tempo. Não sei se tempo suficiente pra você me perdoar, mas tempo suficiente para eu me colocar ao teu lado, incondicionalmente. Mesmo que você siga defendendo esse cara. Mesmo que as coisas piorem. Mesmo que ele deixe de só gritar com você e comece a ser mais agressivo. Mesmo que ele deixe de só querer determinar algumas coisas que você deve ou não fazer e comece e determinar todas. E eu espero que nada disso aconteça. Eu durmo e acordo acreditando nas pessoas, até em dias que eu não posso suportar mais nada e tento ir embora, eu nunca deixo de acreditar nas pessoas. E acho que esse cara, como aquele outro esse cara, todos eles podem mudar. E eu quase rezo, quase rezo de verdade, mesmo sem crer em nada, para que ele mude e nada disso aconteça com você. E que você me odeie pra sempre, porque afinal de contas, não era esse cara. Mas que seu ódio por mim não deixe que você se esqueça jamais que ele pode ser esse cara. E que se você sentir que ele é esse cara você use esse ódio que construiu para reagir. E que você sobreviva e que você seja melhor que eu, muito melhor que eu. Melhor que eu pra entender que a culpa não é sua. Melhor que eu pra reconstruir sua vida com menos dores. Melhor que eu pra ter a certeza que a coisa que mais importa nesse mundo todo é você e a pequena vida que surge. E que nem por esse cara, nem por nenhum outro cara, vale a pena macular seu coração e sua alma.

Se um dia você quiser, vou estar aqui. Se não quiser eu entendo, respeito e sigo. Dormindo e acordando pensando em você irmã, porque eu te amo, assim como amo todas minhas irmãs, todas oprimidas, feridas e estranguladas pelo machismo. Como amo a moça que morreu à marteladas pelo marido, que era com certeza esse cara. Como amo as prostitutas que são a válvula de escape de muitos desses caras, como eu amo minha mãe, que por causa desses caras teve sua vida destruída e jamais pode ser feliz e nem superar a culpa de ser vítima desses caras. Eu te amo como eu amo a mim, que fui vítima desse cara, de outros caras desses e não sei se um dia vou me recuperar. Eu te amo, irmã. E isso é pra sempre, não importa o que vier. E nenhum desses caras vai ser mais importante que o amor que eu sinto por você. Eu te amo irmã, eu te amo.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

O que fazer quando você sabe de tudo e percebe que nada pode controlar? O que fazer quando todas as dores superam qualquer prazer? O que fazer quando lhe falta o ar? O que fazer quando as camadas de pele endurecida pelas cicatrizes são tantas que o amor não penetra? O que fazer quando fugir parece melhor do que viver? O que fazer quando todos os caminhos levam à dor?

Me diz, o que fazer. Porque eu não sei.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

E cantará canções de amores perdidos

Olhando para um ponto fixo no chão e girando, girando sobre ele sem parar. Quando criança a sensação seria tão incomoda como agora? O girar girar é girar eterno da roda das sensações. Parecia-lhe que as crianças não possuem memórias sensoriais tão desenvolvidas como os adultos e por isso mesmo permitiam-se adentrar sempre este mesmo jogo, sem pode se lembrar que o resultado final eram náuseas imediatas e uma dor de cabeça que permaneceria por algumas horas. Agora não usava mais brincar de rodar. Mas ainda deixava sua cabeça girar em um giro inscrito no universo de possibilidades inventadas a cada novo personagem que percorria uma parte de sua história.
A cada ano tentavam, em vão e rufião tom, convencer que não há porque manter a gira. Fecham-se os livros periodicamente. Feita a sua biblioteca caminhe com este pequeno armário ao longo de sua vida. Preferencialmente fechado. Se for abri-lo que seja somente para que entre um ar, mas prenda na rede qualquer letra que ouse tentar o suicídio. E não se esqueça: ataque com rajadas de inseticida letal qualquer ser movente que ouse tocar os pés de sua cristaleira de livros.
Pasmem agora, pasmem todos (ou fechem os olhos, os ouvidos e as papilas) para quem constrói estantes abertas. Cada caminhada novos livros pululam pelo caminho e são assim agraciados como novos espaços e novos descaminhos por uma biblioteca em espiral sem fim.
Observam atentos cada um carregando sua cristaleira nas costas. Vez por outra caminham em dois. Ela observa o conteúdo das cristaleiras dos pares. Enquanto um lê Baudelaire o outro a surpreende com Paulo Coelho. Eles se abraçam e sorriem. As cristaleiras choram pedaços de vidro escuro com essa união. Os pedaços de vidro ferem seus olhos. Mastiga-os produzindo uma música quase perturbadora, ainda que feliz.
Segurando no tronco grosso e intrincado de uma árvore ancestral gira gira e gira, espiralando por entre a sua biblioteca. Convida todos os passantes e caminharem com ela. A abrir um exemplar de Michael Ende ou de escrever algumas palavras na máquina de escrever da mesa de centro. Mas eles cospem vidro e amam moças que lêem Paulo Coelho.
Então gira gira e gira. Constrói amores de papel e vidro, pinta com seu corpo novas formas e se deixa levar por mais um dia, mais um personagem e mais uma canção composta de vidro, dentes e sangue.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Baile noturno de duas espécies selvagens

Pulava e pulava de uma margem à outra do rio em saltos impressionantes a gata, acostumada que era a fazer seus próprios caminhos estava dando saltinhos engraçados, quase divertidos. Margem de lá, margem de cá. Era seu jeito de perseguir a sombra dele. Que era uma sombra sonora, era uma sombra presente, mas que não deixava de ser só uma sombra e não se pode rolar na grama nem brincar com uma sombra de outra coisa que não seja pega pega, jogos de adivinhação ou ter eternas discussões filosóficas. E tudo isso era muito divertido, pulava e falava, muitas vezes a sombra nem estava propriamente lá, assim como diversos momentos ela de distraia com alguma borboleta ou osso no caminho e também deixava a sombra brincando sozinha. Mas era uma coisa bonita, o jogo da gata com a sombra dele.
Mas havia o uivo distante que vinha de lá, de onde morava sua carne, seus pelos, e esse uivo distante era muito mais alto quando ela dormia. Ela dormia e sonhava com ele perto, porque quando se dorme pode-se ir ao longe e também porque gente de sonho é da mesma matéria que gente-sombra, então podiam rolar na grama e misturar seus gostos. Mas faltava o toque do pelo. Toque do pelo não tem em sombra, toque do pelo não tem em sonho. Por isso acordar era a pior parte do dia, quando buscava no seu corpo um vestígio dos pelos dele e não encontrava nada, nadinha. Não havia um pelo sequer. Se esticava, se espreguiçava e se erguia, mais um dia vivendo a sua vida e também saltitando por horas em suas brincadeiras com a sombra.
A cada dia ficavam mais íntimos e parecia que aquele jogo se estendia por anos, ainda que fosse só uma dupla de meses. Uma dupla de meses, dois animais terrivelmente ariscos porque tinham dentro de seus olhos estrelas antigas. E estas estrelas quando se encontram se identificam e querem explodir com seus brilhos.
De brilhos, saltos e conversas intermináveis engalfinhavam suas almas, lembrando e esquecendo de suas dores a cada momento. Lembrando e esquecendo do passeio (inesquecível) que haviam feito à alcova, de seu entrelace de pelos e sabores, quando sombras, sonhos e corpos se encontraram. Lembravam e esqueciam como se aproximavam e se esquivavam, tudo sempre acontecia em compassos, como uma dupla que ensaiara por anos uma dança, mas que na verdade a coreografia parecia esquecida há tempos. Não saber o próximo passo até que fosse o exato momento de dá-lo, lindo porém enlouquecedor.
Saltava a gata, pulando de um lado para o outro, buscando o uivo distante. O animal bravio esperava, queria, ansiava em seu discurso para não ser ameaçado.
Pulava a gata de um lado para o outro. De uma margem à outra de um rio. O rio circulava o povoado. O povoado morada dos lobos. Circulava e circulava, em grandes círculos, concêntricos. Vez por outra vislumbrava uma terceira margem. Vez ainda pensava em dar o pulo do gato. Então parava, lambia suas patas em um semi-lamento felino. E voltava a pular, de um lado ao outro. Acuado só está o animal que não sai do lugar.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Minha história com os animais (or empty cunt mouth)



Olhando para suas mãos molhadas de sua própria excitação preparava-se para dormir mais uma noite, sozinha. O fato de estar sozinha era completamente irrelevante, não fosse este problema. Respirar e gozar com alguém. Respirar porque lhe faltava o ar de uma forma não mortal, mas de certa forma que lhe garantia uma sobrevida e dias por mês até certas felicidades simples. Mas lhe faltava um segundo respirar, aquele que é reflexo de um pulmão que se espelha em outro. Ainda que doente. Ainda que esfumaçado. Pulmões precisam de espelho.
Tentava inspirar profundamente o ar e muitas vezes acabava levemente inebriada com o cheiro do seu próprio sexo. Jamais tivera controle sobre seus desejos e não seria diferente agora. Mas tinha aprendido a ter um ligeiro controle sobre suas emoções, o que lhe permitiu sentir tudo mais intensamente, o que acabava por tornar cada conversa mais excitante, cada subentendido um suspiro mudo que buscava um eco no vazio.
Minha ansiedade ainda vai me matar - pensava ela enquanto rolava de um lado para o outro da cama semi vestida, inocentemente sexy, suja de tinta e com os cabelos desgrenhados que faziam nós e desfaziam seus próprios nós sempre que buscavam se enroscar com outros longos cabelos em seus travesseiros.
Mas não havia sido a ansiedade que a salvara das suas paixões mais destrutivas? Não seria a ansiedade uma salvaguarda de sua sanidade? Era paradoxo, como tudo nela, como o todo dela, como cada parte dela poderia ser tese e antítese de si mesma.
Amadurecera tanto nos últimos meses, nos últimos anos que olhava para o seu passado com ares de sabedoria e com uma risada safada no rosto. Safada porque era assim que era. A parte mais sensível de seu corpo sempre seria sua vagina e parecia um tanto entediante ter que aposentar temporariamente este sentido, por mais que fosse por opção própria. Brincava de tato no seu tato quase todos os dias. E gozava profundamente. Mas daí terminava e buscava aquela respiração profunda. E nada. Girava, girava na cama. Suava frio, suava quente, alguma hora dormiria, ou não dormiria e levantaria para um novo dia, dias sempre diferentes e cheios de magias e novas experiências. Entendia que era feliz, mas era um feliz pequeno. Era um feliz para os olhos, era um feliz para os ouvidos, era um feliz até para parte de seu paladar, que adorava doces, mas sentia uma falta enorme do gosto especial de um pau diariamente. E salivava pensando em conversas perdidas em noites de encanto. A lascívia sempre conquistava a sua imaginação, mais do que qualquer jura de amor. Isto porque amar ela amava. Amava a si mesma e suas letras, suas tintas e seu pequeno gato persa. Amava um ou outro amigo e tinha um certo tipo diferente de amor por sua família. Mas o seu eixo, sua vagina, amava um pau. E sempre seria uma meia felicidade, ainda que tudo estivesse perfeitamente bem, enquanto não pudesse encontrar um pau para preenchê-la. E não um a cada noite, ela era livre e poderia ser de vários, mas sua vagina queria exclusividade, queria conhecer profundamente um certo pau por muito tempo, até que se cansasse dele ou que ele esquecesse o caminho de sua entrada pela flacidez do tempo. E sempre seria uma meia felicidade porque sua boca era meio sorriso, entreaberta. Querendo cobrir um falo, mas querendo de um tanto que a deixava meio sem fome. Chega uma hora na vida de uma boca assumidamente safada que a comida perde a graça quando se quer passar manhãs e noites saboreando porra, engolindo e sorrindo feliz com os lábios gozados e vermelhos de tanta pressão.
Era uma noite, mais uma noite, iria dormir molhada, molhadíssima, era exímia em seu próprio prazer. Mas com meio sorriso, meia respiração e uma vagina infeliz.
Não era nada disso, nem era zoofilia, meu desejo por animais era outro. Mas acredite, ela estava feliz. Só que transbordava lascividade e não havia ninguém aqui para consumir esse desejo. Mas estava feliz. Sonhando com animais exóticos e fodas irrealizáveis, destas de que são feitas os sonhos eróticos de quem não tem medo de passar a noite em gozo. Era feliz. Mas queria um pau. Porém era feliz.

sábado, 3 de setembro de 2011

The same old story...

24 primaveras num mundo dominado pela barbárie onde as estações há muito não existem.
E dentro disso? Muitas vidas!
Infinitas se você acredita no mundo das possibilidades...
Finitas e intensas todas que eu posso me lembrar.
Mas com alguns vícios. Algumas histórias recorrentes e alguns hábitos autodestrutivos que não abandonamos com facilidade.

(escrito no início de 2010, estou publicando meus rascunhos)

Da paixão e outros vícios...

Nossa insanidade repousa dentro de garrafas de cerveja e conversas desconexas, sou movida pelos meus vícios, tenho controle sobre todos eles, menos sobre a paixão que se esconde, quieta, entre olhos que muitas vezes nunca vi e me ataca de tal forma que tira me fôlego e me enche de angústia. Invariavelmente.
Objetivava, com uma urgência sufocante, escrever linhas sem fim que me provassem que deve-se evitar a todo custo qualquer mergulho nessas terras insólitas.

(rascunho inacabado, escrito em 2010)

Pequeno bloco de luz e nebilna.

Aquelas paredes ornamentadas em três cores apenas pulsavam olhos que nos admiravam, ainda que em reprovação. Uma reprovação silenciosa única dos olhos planos e fixos encrustados na realidade por rolos e pincéis.
Os faróis eram fraca luz perante o espectro luminoso e artificial que era lançado sobre nós, por incoerência, vindo de baixo. Buzinas e motores. Vozes em algazarra. Músicas e batidas.
O ar gelado transpassando as fibras e tramas das roupas de nós turistas incautos de um mundo imprevisível e adolescente.
Fez-se silêncio. Silêncio cortado pelo calor inóspito: de baixo. De dentro. Do seu corpo. Do meu corpo. De nossos corpos. Colados.
Exalando aromas inesperados, tocando cada parte de meus sentidos. Com sua pele, mãos, braços, pelos e encantos. Despigmentados. Por um momento eterno. Plenos.

domingo, 27 de março de 2011

__________________________________________________

Antes de te perceber humano me pareceu em estampa colorida, colorida, colorida. Engraçado, para alguém que é feito de escalas de cinza. Não notei, em ti, nada além de uma silhueta musical, de uma banda qualquer que já terminou há tempos. Fora de seu tempo, deslocado.

Algo entre o produto da tua mente e esse deslocamento despertaram um encanto, um encanto que atingiu timidamente um coração e uma mente cheia de amores vazios. Tão distante quanto meus amores geográficos, ainda que estivesse ao meu lado, no plano do inatingível, onde coloca-te.

Era um quadro tão incerto, tão ousado. O quadro que sonhei pintar, com meus pincéis e dedos, saliva e suor de formas que ainda não pude descobrir.

Depois disso vieram os seus olhos, um azul infinito (preciso retratá-los, mas temo onfedê-lo, entre tantos auto retratos que pintaste não seria uma ofensa terrível tentar reconstruí-lo, capturá-lo e moldá-lo com minhas próprias e inexperientes mãos de uma pseudo-artista plástica, ainda que palavrista quase invulgar?)

O azul me encantou, mas foi o mistério que me fez ficar. O mistério e o desafio. Sabes, tu te enquadras naquele ideal inatingível, com tanta tristeza perdida em um sorriso, tanto medo e dias partidos, dias perdidos. Cada parte de mim anseia por poder colar as peças, rearanjá-las. Fazer contigo novos e novos desenhos de mundo.

Se, para o mundo, sempre constituíremos parte integrante, e por isso isolada, deste mundo que é cinza demais e pesa sobre nossas costas, que para nós possamos compor com teu azul, com meu verde (e com algumas centenas de pelos de gato) um novo horizonte de ilusões em technicolor.

Sabes, sonho conosco todas as noites e, nos meus sonhos, somos muito felizes. Juntos.


Com nossas caixinhas de Marlboros contrastantes, cravos da índia. E nossas dores, que fiquem no passado.

domingo, 6 de março de 2011

Se eu pudesse entrar na sua vida...

Multiplicidade de dessintonias, de tempo espaço e vontades.Atraído por um arco-íris que esconde um universo de constrastes acromáticos binariamente conectou seus universos. Um furor revolucionário a fizera esquivar de suas investidas, naquele tempo onde as coisas eram tão simples e tão etéreas. Aquele tempo que passou e junto com eles tudo que estava a sua volta.
Sempre esteve à margem de sua vida, uma atração incomum. Discordava de tantas coisas que ele defendia veementemente, ao mesmo tempo que se sentia magnetizada por elas. Um revolucionário sem revolução, sem organização, sem ideologias, ainda que, de fato, fosse inundado por elas. Poucas conversas, mas tão profícuas que se tornaram inesquecíveis.

Estavam tão perto e tão longe, uma proximidade que não possibilitava que o toque se realizasse. Não que não houvesse desejo, só imperava a dessintonia. Quando o furor revolucionário a abandonou e os questionamentos existenciais caíram em tempestade do século, ela olhou para ele novamente com olhos de semelhantes. Semelhantes em questionamentos e em questionamentos aos questionadores e às questões. Eram feitos da mesma matéria sem cor, ainda que inexplicavelmente brilhantes. Brilho daqueles que ofusca os olhos de quem se aproxima e os torna sempre seres à margem da sociedade e de qualquer grupo estabelecido, mesmo aqueles outros que também estão à margem. Mas o desejo dele estava dominado por ouro amor, outra realidade. Seria nunca mais novamente, uma parte da história que sempre haveria de não ser. Eles tentaram, mas não seria correto. Ele recuou. Ela calou-se. Hiato.

Partiu para longe, sua terra natal tão distante de seu coração e de sua verdade, como eram para ela agora todos os lugares. Eterna alma sem lar. A vida, os amores e os desejos seguiam, como seguem e são carregados pela sua intensa correnteza. Vez por outra ela espiava a vida dele, mas espiava com olhos curiosos. Desejava sua felicidade, claro que desejava. Desejava mas vivia se perguntando sobre o que poderia ter sido e não foi. Viu felicidade e tristeza, plenitude e desespero.

Eram sentimentos controversos que os uniam. Longa conversa em um momnto que ambos esbaldavam destruição, cortejavam a morte, cortejavam o fim de seus sofrimentos, inexplicáveis e inconciliáveis com a vida. Mais uma madrugada, quase manhã estavam, virtualmentel, frente a frente. Semelhantes que eram se estranhavam e se igualavam. Conversas únicas que ansiavam por se tornarem realidade.

Mas havia o desejo, parte constituinte dessa relação. O desejo era protagonista e recíproco como a antipatia existencial que compartilhavam. Houveram conversas intensas, quase eróticas, mais que eróticas, inexplicavelmente excitantes que instigavam um encontro real, o toque de carne.

Para se proteger de uma verdade latente ela marcara esse desejo de verdade absoluta, decide apostar no tudo ou nada. Ele ainda tinha o coração dominado por outro amor. Ela alimentava um vácuo dentro de si que poderia que engolir sua alma se não tomasse cuidado. Um convite negado, palavras muito duras. Condierou que era o fim de qualquer chance de qualquer coisa daquele quase nada.

Uma fala perdida na madrugada, ousadia, novas conversas pautadas no desejo da carne. Ele era forte, era intenso, mas haveria chance para um nada baseado só em desejo. Seria muito esforço para uma foda apenas? Ela gostava de achar que era uma foda apenas, era ilusão, era auto ilusão. Jamais seria só isso, jamais seria mais um dos insignificantes. Ele não queria ser um deles também, ainda que não soubesse de fato o que esperava, mas não era daqueles que buscava buracos vazios em mulheres tão vazias. Ela representava uma possibilidade muito maior, o que assustava e instigava, em partes iguais.

O desafio era vencer a distância. Agora era muito concreto, pastos e serras que os separavam. Mas eram livres, tão livres quando poderiam ser, já que tão presos em suas reflexõs eternas. Parecia que o problema era a distância, mas o medo de deixar outra pessoa adentrar em sua vida era lacerador. Para ambos.

Respirando fundo, lutando contra sua (in)sanidade ela buscava agora uma brecha, uma oportunidade para penetrar em sua vida. Mesmo que por uma noite. Mesmo que por um instante, ainda que anseie profundamente por algo muito maior. Pele com pele, boca com boca, sexo com sexo. Mais que isso: alma com alma.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Rotinaria

Despertar no meio da noite, 1:37, sempre igual já há tantos anos que ela nem sabia quando começara. E um despertar improdutivo, um despertar vazio que só conseguia encarar o teto, reflexo de seu abismo interior. Os dias se passavam indiferentes a esta realidade que estava atrelada a sua alma, a realidade de estar, permanentemente, encarando o vazio.
Não que, de certa forma, todos não conseguissem perceber na vida algo de errado, algo de estranho ou uma falta de propósito. Mas a grande maioria estava arraigada à crenças que imprimiam sobre este quadro de caos algum tipo de esperança em uma salvação. O bom do abismo é que era um quadro negro infinito, então qualquer um que quisesse ou pudesse conseguia pintar um quadro diferente, ou comprar um pronto, em um livro, em uma igreja ou qualquer outro templo e assim infinitas imagens fictícias se sobrepunham. Aqueles que olhavam desatentamente podiam até sorrir. No entanto um olhar mais cuidadoso e apurado, um olhar 20/20, um olhar de águia, veria a verdade. Veria a borda colada, veria a tinta descamando, veria que era somente uma imagem estática.
E era por isso que para ela só havia o abismo infinito.
3:57 os olhos tombavam. Dormia um novo sono, desta vez imersa em sonhos, sonhos de quem não via o abismo, sonhos de luz. Estas poucas horas de sono que se seguiam eram os únicos momentos de paz e alegria que lhe eram permitidos viver.
6:30 o despertador toca e ela se levanta em um salto agonizante, sem sentir direito os membros, as imagens todas baças, confundem-se com o paraíso do qual foi recém arrancada. Liga o chuveiro e cada gota cai sobre sua pele como lâminas bem afiadas.Se arrasta para fora do chuveiro, ensopada e sai formando poças por toda casa enquanto abre o pote e come algumas bolachas murchas, acompanhadas de água.
Se veste com o mesmo uniforme marrom-morte que usa todos os dias e que raramente lava. Segue andando pelas ruas, entra por aquela porta e começa a contar as caixas sem fim que nunca terminam. Não lhe pergunte o que é que ela faz em seu trabalho, não pergunte, na verdade, nunca, nada a ela.
Seus olhos sempre estão distantes e a única imagem que vê com clareza é o quadro negro do abismo sem fim.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Pelas lentes erradas o olho bom vê o mundo distorcido. (ou uma verdadeira história de como dois perdidos numa noite suja se apaixonam)

A luxúria nunca havia sido um problema para ela. Criada ao som de Nelson Rodrigues entoados pela madrugada escura de uma cama ao lado, ocupada por uma alma confusa, seu universo havia sido eregido em torno da busca pelo prazer. Seja dos prazeres exóticos e curiosos da infância onde tinha descuberto sua sexualidade mesmo sem perceber aos prazeres sexuais com outras pessoas que descobriu logo cedo em sua adolescência, mesmo antes de seu primeiro beijo.
Em um dia qualquer de fevereiro havia descoberto que o mundo poderia se mover em torno do seu corpo caso soubesse movê-lo da forma correta e desde então jamais puderá se livrar do fascínio que a carne exercia e do poder que tinha sobre a carne, lasciva, de todos.
Homens, mulheres, todos se curvavam em torno do seu magnetismo, mas era ela que de fato se curvava lhes oferecendo sexo oral como se oferece um copo d'água.

Ninguém lhe vencia em seu campo de batalha, era uma entidade do prazer. Não haviam adversários à sua altura, jamais houveram.
Ou era assim que pensava, mas a vida é cheia de surpresas e algumas são fascinantes e fazem nosso mundo girar mais rápido, como no dia em que se conheceram.

E de todos os amores que transitavam pela sua não linearidade um homem sempre esteve presente, mas nunca foi amado. Era nele que se satisfaziam os prazeres da carne e as risadas em noites esparsas pela história de suas vidas.

Numa noite qualquer naquele mesmo local soturno onde havia construído boa parte da história de sua vida, onde havia deixado muitos sonhos e orgasmos, aquela pista escura que refletia o espectro da sua alma. Tantos anos se passaram e se não fosse a memória que ele tem daquele dia esse quadro seria extremamente embaçado. Que ela não tivesse todas as lembranças era compreensível, que ele se lembre de quase todos os detalhes revela o fato que aquele dia marcaria a história de suas vidas para sempre.

Com seu ar de virgem assassina, nem virgem e nem assassina, ele se deixou conquistar pelo infinito que transbordava dos seus olhos e pelo desafio que estava lançado. A calcinha branca, os cheiros, sua mão forte lhe agarrando a nuca. Era só a primeira partida.

Nunca houve antes ninguém que pudesse desafiá-la em seu jogo. Nunca antes houve alguém que pudesse desafiá-lo em seu jogo.

Como não desejar eternamente um adversário à altura? Aquilo que ambos ansiaram durante toda a vida. Não havia volta, aquela madrugada de quinta mudaria suas vidas, muito mais do que eles poderiam mensurar, de forma mais profunda, mais intensa é mais perturbadora. Sem que eles notassem. Pouco a pouco.

A cada ano, a cada reencontro, a cada encontro virtual, a cada dirty talk na madrugada (ou mesmo de dia) continuaram a jogar. Tudo combinado, é quase nada, somente sexo e amizade.

Não há aqui um romance a ser contado. Há uma ode à carne. Uma história de desejo entre uma mulher dona de seus desejos, sempre molhada com sua presença e um homem que não podia evitar uma ereção a cada olhar, decote, aroma, e toque de seus alvos pés, sempre impecavelmente cuidados.
A força motriz da humanidade não é feita por corações e histórias melosas de amor e sofrimento. A história do homem é a história do desejo, história da busca pelo desejo e de estar junto com aquele que melhor pode satisfazer aos seus desejos.

E nem todo o desejo se trata puramente se sexo, pode ser o desejo de se ter alguém com quem conversar sobre qualquer coisa ou coisa nenhuma, sentados em qualquer bar, em qualquer lugar. Os assuntos sempre se sucederam com uma facilidade inebriante -tão inebriante quanto o alcool que regava largamente as conversas, as vezes por demais, nos levando à boas risadas. Eram tão semelhantes, em tantos sentidos que, se houvesse um deus jamais teria deixado que eles se conhecessem. O que pouco nos importa já que, nessa realidade, não há um deus comandando, somente a lei dos homens.

Eles faziam parte da vida um do outro e isso não era possível de ser negado, ainda que fosse mantido como um segredo de estado. Como aquelas coisas especiais que gostamos tanto que guardamos em caixinhas ao lado da cama para que ninguém toque, era tão íntimo, intenso e tão velado que sobreviveria à todas as intempéries de suas histórias. Amigos que se foram e que retornaram. Amores que se foram para sempre. Casamentos rompidos. Nada abalou essa relação, pelo contrário, cada ano só tornava-a mais forte e indelével.

Muito racionais e calculistas que sempre foram se tivesse se dado conta do que estava por acontecer certamente um dos dois teria fugido. Este é o poder das grandes revelações, elas nos pegam desprevenidos e nos queimam em brasa.

À quantas paixões perdidas já haviam brindado? Perde-se a conta. Não havia de ser diferente naquele dia, risadas, reflexões sobre a vida. Desaconselhos e flertes. Tudo isso envolto em garrafas e garrafas de líquido dourado. Um abraço forte, lágrimas derramadas.

O que você busca nessa vida?

Poderia eu ser esse que se enquadra nos seus sonhos? Sabe quantos sonhos sonhei com você ao meu lado, tendo essa conversa. Parece que nunca havia notado, mas você é a primeira de todas, a mais especial de todas. A única que soube jogar meu jogo.

Poderia ser eu essa que se enquadra nos seus sonhos? Minha resposta à pergunta reiterada em infinitas noites é aceito. Aceito ser só tua, abrir mão de todos os outros amores. Aceito que você seja o único homem que me foda, desde que me foda direito. E todos os dias.

Eu jamais diria isso sóbrio mas e u t e a... -shhh, não diga isso.

Entre beijos e lágrimas, promessas e amnésias tudo estava de cabeça para baixo.

No dia seguinte ela estava decidida: era ele.

No dia seguinte ele estava de ressaca: havia se esquecido de tudo.

A verdade tinha tomado corpo e o desejo sobrepujado a razão. Poucos dias depois ela lhe contou tudo. Ele temeu e recuou. No entanto não havia volta. A última batalha estava sendo lançada, era no campo perfeito, não lutavam um contra o outro. Ele lutava contra ele mesmo, ela lutava por ele. O que ele não podia ver, ainda, é que ambos lutavam pelas mesmas coisas.

Para a felicidade plena ela abrira mão de todos os homens pelo amor dele. Ele só precisaria abrir mão de uma mulher para ser feliz ao lado dela. Ambas as escolhas seriam catastróficas. E ambas, necessárias.

A sorte está lançada. A verdade é mais absoluta que a vida. Somente juntos poderiam ser plenamente felizes.

*Sem correções