quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Baile noturno de duas espécies selvagens

Pulava e pulava de uma margem à outra do rio em saltos impressionantes a gata, acostumada que era a fazer seus próprios caminhos estava dando saltinhos engraçados, quase divertidos. Margem de lá, margem de cá. Era seu jeito de perseguir a sombra dele. Que era uma sombra sonora, era uma sombra presente, mas que não deixava de ser só uma sombra e não se pode rolar na grama nem brincar com uma sombra de outra coisa que não seja pega pega, jogos de adivinhação ou ter eternas discussões filosóficas. E tudo isso era muito divertido, pulava e falava, muitas vezes a sombra nem estava propriamente lá, assim como diversos momentos ela de distraia com alguma borboleta ou osso no caminho e também deixava a sombra brincando sozinha. Mas era uma coisa bonita, o jogo da gata com a sombra dele.
Mas havia o uivo distante que vinha de lá, de onde morava sua carne, seus pelos, e esse uivo distante era muito mais alto quando ela dormia. Ela dormia e sonhava com ele perto, porque quando se dorme pode-se ir ao longe e também porque gente de sonho é da mesma matéria que gente-sombra, então podiam rolar na grama e misturar seus gostos. Mas faltava o toque do pelo. Toque do pelo não tem em sombra, toque do pelo não tem em sonho. Por isso acordar era a pior parte do dia, quando buscava no seu corpo um vestígio dos pelos dele e não encontrava nada, nadinha. Não havia um pelo sequer. Se esticava, se espreguiçava e se erguia, mais um dia vivendo a sua vida e também saltitando por horas em suas brincadeiras com a sombra.
A cada dia ficavam mais íntimos e parecia que aquele jogo se estendia por anos, ainda que fosse só uma dupla de meses. Uma dupla de meses, dois animais terrivelmente ariscos porque tinham dentro de seus olhos estrelas antigas. E estas estrelas quando se encontram se identificam e querem explodir com seus brilhos.
De brilhos, saltos e conversas intermináveis engalfinhavam suas almas, lembrando e esquecendo de suas dores a cada momento. Lembrando e esquecendo do passeio (inesquecível) que haviam feito à alcova, de seu entrelace de pelos e sabores, quando sombras, sonhos e corpos se encontraram. Lembravam e esqueciam como se aproximavam e se esquivavam, tudo sempre acontecia em compassos, como uma dupla que ensaiara por anos uma dança, mas que na verdade a coreografia parecia esquecida há tempos. Não saber o próximo passo até que fosse o exato momento de dá-lo, lindo porém enlouquecedor.
Saltava a gata, pulando de um lado para o outro, buscando o uivo distante. O animal bravio esperava, queria, ansiava em seu discurso para não ser ameaçado.
Pulava a gata de um lado para o outro. De uma margem à outra de um rio. O rio circulava o povoado. O povoado morada dos lobos. Circulava e circulava, em grandes círculos, concêntricos. Vez por outra vislumbrava uma terceira margem. Vez ainda pensava em dar o pulo do gato. Então parava, lambia suas patas em um semi-lamento felino. E voltava a pular, de um lado ao outro. Acuado só está o animal que não sai do lugar.