segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Rotinaria

Despertar no meio da noite, 1:37, sempre igual já há tantos anos que ela nem sabia quando começara. E um despertar improdutivo, um despertar vazio que só conseguia encarar o teto, reflexo de seu abismo interior. Os dias se passavam indiferentes a esta realidade que estava atrelada a sua alma, a realidade de estar, permanentemente, encarando o vazio.
Não que, de certa forma, todos não conseguissem perceber na vida algo de errado, algo de estranho ou uma falta de propósito. Mas a grande maioria estava arraigada à crenças que imprimiam sobre este quadro de caos algum tipo de esperança em uma salvação. O bom do abismo é que era um quadro negro infinito, então qualquer um que quisesse ou pudesse conseguia pintar um quadro diferente, ou comprar um pronto, em um livro, em uma igreja ou qualquer outro templo e assim infinitas imagens fictícias se sobrepunham. Aqueles que olhavam desatentamente podiam até sorrir. No entanto um olhar mais cuidadoso e apurado, um olhar 20/20, um olhar de águia, veria a verdade. Veria a borda colada, veria a tinta descamando, veria que era somente uma imagem estática.
E era por isso que para ela só havia o abismo infinito.
3:57 os olhos tombavam. Dormia um novo sono, desta vez imersa em sonhos, sonhos de quem não via o abismo, sonhos de luz. Estas poucas horas de sono que se seguiam eram os únicos momentos de paz e alegria que lhe eram permitidos viver.
6:30 o despertador toca e ela se levanta em um salto agonizante, sem sentir direito os membros, as imagens todas baças, confundem-se com o paraíso do qual foi recém arrancada. Liga o chuveiro e cada gota cai sobre sua pele como lâminas bem afiadas.Se arrasta para fora do chuveiro, ensopada e sai formando poças por toda casa enquanto abre o pote e come algumas bolachas murchas, acompanhadas de água.
Se veste com o mesmo uniforme marrom-morte que usa todos os dias e que raramente lava. Segue andando pelas ruas, entra por aquela porta e começa a contar as caixas sem fim que nunca terminam. Não lhe pergunte o que é que ela faz em seu trabalho, não pergunte, na verdade, nunca, nada a ela.
Seus olhos sempre estão distantes e a única imagem que vê com clareza é o quadro negro do abismo sem fim.