segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Carta a uma irmã

Neste momento eu quero que você me odeie. Quero que você me odeie com todas as suas forças, quero que você me desacredite, que me puna, mentalmente... quero ouvir e ver indiretas e diretas soltas pelo ar. Seus dedos trêmulos, sua voz impositiva. Com todas as suas forças, me odeie, irmã.
Somente do seu ódio, da sua fúria é que surgirá sua força de reação. Que sua raiva se volte contra mim agora, eu durmo e acordo acreditando que ela vai encontrar seu foco. E o foco da raiva nunca deve ser quem está, como você, do mesmo lado da opressão.

Eu já estive aí. Eu, na verdade, não estou ilesa de estar aí, no lugar que você está. É a primeira vez que digo isso assim, num lugar onde todos podem ler... mas eu passei oito anos defendendo um agressor. Pior, não era qualquer agressor, ele era um pedófilo, abusava de sua irmã quando ela era criança pequena. Esse cara, agressor, pedófilo e abusador com quem eu tive um relacionamento abusivo... esse cara queria ter filhos. E me convencia que era uma boa ideia. E ele achava também que era uma boa ideia iniciar seus filhos sexualmente. Esse cara, com quem eu vivi. Com quem me relacionei por oito anos. Esse cara com quem eu perdi a minha virgindade (e esse valorzinho idiota pesa). Esse cara com quem eu construí uma casa, uma vida. Esse cara para o qual minha mãe me entregou para viver com ele (e eu tinha 18 anos), por quem deixei minha casa, minha vida, meu estado (pela primeira vez). Ele era esse cara, ele era aquele cara que a gente sempre ouve falar, mas que acha que nunca vai acontecer com a gente. Eu tava do lado dele e eu nunca pude enxergar que ele era esse cara. E, quando eu notei, anos depois do termino desse relacionamento, eu me culpei (e me culpo) porque eu amava esse cara. E porque eu nunca pude reconhecer que ele era esse cara. Porque eu nunca pude defender a irmãzinha dele das atitudes dele. Porque eu pensei e ter um filho com ele. Porque eu nunca denunciei e hoje ele vive com uma mulher que tem filhos. Esse cara pode estar abusando dessas crianças. E eu nunca vou me perdoar, porque eu amei esse cara.

Ah, esse cara, aquele cara, não parecia com nada ser "esse cara". Ele era um mar de carinho e fofuras. Dizia e agia como se me amasse profundamente. Me enchia de presentes e elogios. Me mimava. Ele era aquele outro cara, sabe, aquele cara que todas as suas amigas invejam? Porque além de tudo isso, esse cara tinha um ótimo emprego, daqueles empregos que as pessoas invejam. Esse cara também era muito inteligente, era um daqueles caras que chamam de gênio, provável que seja a pessoa mais inteligente que conheci. Esse cara também era engajado politicamente, tá, não como eu vejo hoje que alguém deveria, mas ele era. Todo ligado em democratização da comunicação, fazia parte de uma ONG (ok, ok, naquela época isso parecia legal!) e dedicava boa parte do seu tempo pra coisas interessantes, diversas, engajadas, importantes. Enfim, esse cara, ele parecia muito ser aquele cara.

Eu sempre soube que ele não era aquele cara. Sempre talvez não, mas soube muito cedo no nosso relacionamento. Mas eu gostava de repetir pra mim mesma que ele era aquele cara, que ele não era esse cara, que, afinal, ele não tava mais abusando da irmã, e que, talvez, quem sabe, não fosse nenhum absurdo isso, afinal, quem inventou que está errado. Esse cara me fez questionar meus valores e mesmo acreditar nos valores dele. Tudo porque eu queria acreditar que ele não era esse cara, que ele era aquele cara.

E não foi por nada disso que nosso relacionamento terminou. Entre ondas de traições, quebras de confiança e manipulações uma hora eu olhei pra fora e vi que podia viver sem ele. E fui em frente. E eu realmente demorei pelo menos três anos a mais, ou seja, 11 anos, pra entender que aquele não era aquele cara, que aquele, ele era esse cara. E nesses anos todos eu briguei com amigas e amigos, com a família. Defendi com unhas e dentes que ele era aquele cara. Porque admitir que ele era esse cara era admitir o meu fracasso, afinal, de estar com ele. De ter aceito e legitimado um cara desses. Era ser conivente, era ser culpada. Porque a gente vive num mundo onde a dinâmica dos acontecimentos sempre culpa a mulher que está do lado desse cara e esse cara segue impune. (e esse cara, importante dizer, está impune)

Essa minha história com esse cara é uma das histórias que eu poderia contar, divido com você, e com o mundo, poque ela é a pior delas. Mas em menor ou maior grau, esse não foi o último cara desses que eu estive. Sempre defendendo eles, nunca ouvindo as pessoas mais importantes da minha vida, que sempre estiveram ao meu lado. E, irmã, eu sei que eu não sou a pessoa mais importante da sua vida. Nossa amizade vem de longe, mas ela tem encontrado força há pouco tempo. Não sei se tempo suficiente pra você me perdoar, mas tempo suficiente para eu me colocar ao teu lado, incondicionalmente. Mesmo que você siga defendendo esse cara. Mesmo que as coisas piorem. Mesmo que ele deixe de só gritar com você e comece a ser mais agressivo. Mesmo que ele deixe de só querer determinar algumas coisas que você deve ou não fazer e comece e determinar todas. E eu espero que nada disso aconteça. Eu durmo e acordo acreditando nas pessoas, até em dias que eu não posso suportar mais nada e tento ir embora, eu nunca deixo de acreditar nas pessoas. E acho que esse cara, como aquele outro esse cara, todos eles podem mudar. E eu quase rezo, quase rezo de verdade, mesmo sem crer em nada, para que ele mude e nada disso aconteça com você. E que você me odeie pra sempre, porque afinal de contas, não era esse cara. Mas que seu ódio por mim não deixe que você se esqueça jamais que ele pode ser esse cara. E que se você sentir que ele é esse cara você use esse ódio que construiu para reagir. E que você sobreviva e que você seja melhor que eu, muito melhor que eu. Melhor que eu pra entender que a culpa não é sua. Melhor que eu pra reconstruir sua vida com menos dores. Melhor que eu pra ter a certeza que a coisa que mais importa nesse mundo todo é você e a pequena vida que surge. E que nem por esse cara, nem por nenhum outro cara, vale a pena macular seu coração e sua alma.

Se um dia você quiser, vou estar aqui. Se não quiser eu entendo, respeito e sigo. Dormindo e acordando pensando em você irmã, porque eu te amo, assim como amo todas minhas irmãs, todas oprimidas, feridas e estranguladas pelo machismo. Como amo a moça que morreu à marteladas pelo marido, que era com certeza esse cara. Como amo as prostitutas que são a válvula de escape de muitos desses caras, como eu amo minha mãe, que por causa desses caras teve sua vida destruída e jamais pode ser feliz e nem superar a culpa de ser vítima desses caras. Eu te amo como eu amo a mim, que fui vítima desse cara, de outros caras desses e não sei se um dia vou me recuperar. Eu te amo, irmã. E isso é pra sempre, não importa o que vier. E nenhum desses caras vai ser mais importante que o amor que eu sinto por você. Eu te amo irmã, eu te amo.